bala perdida: agosto 2008

sexta-feira, agosto 01, 2008

Payne



Na sua demanda por lucros nunca dantes imaginados (necessários para financiar um estilo de vida cujos pilares fundamentais são a coca e o champanhe Cristal) os estúdios de cinema norte-americanos têm-se virado essencialmente, nos últimos tempos, para o aproveitamento e/ou reciclagem de produtos de sucesso, tanto no seu próprio segmento (as sequelas) bem como em outras áreas próximas: êxitos livreiros - Harry Potter, Senhor dos Anéis, Príncipe com Caspa - figuras de acção - G.I. Joe, Transformers, o próprio Bruce Willis é uma espécie de boneco articulado - BD - desde o Batman "noiré" até ao "emo-Spiderman" em tons de rosa, um autêntico filão que só agora começa a ser explorado com algum discernimento (ver o dossier Demolidor, ou como se transforma uma das criações mais interessantes do mundo aos quadradinhos numa pastelada encabeçada pelo pastelão-mor Ben Affleck), etc.

Há relativamente pouco tempo julgou-se ter descoberto um novo filão: os jogos de computador/consola. O primeiro filme de que me recordo (nessa onda) é o Doom (2005), a adaptação para o cinema do jogo com o mesmo nome, uma epopeia de massacre alienígena aos comandos de bazookas que disparam raios nucleares, ou coisa que o valha. Ora, acontece que passar duas horas metido num canto do quarto com as luzes apagadas (para criar ambiente propício) a matar essa bicharada toda ao som de música industrial composta pelos NIN, não é exactamente o mesmo que "ver" três ou quatro actores a fazer o mesmo no ecrâ de uma sala de cinema. Durante o filme, à aproximação dos primeiros seres do outro mundo a abater, a tendência é para procurar instintivamente com a mão direita o toque do rato/comando, premir durante 2 segundos o botão de ataque secundário e esperar que a granada de fragmentação faça o resto. Ao invés disso, no filme os heróis escolhem sempre a arma errada e um dos elementos secundários da equipa acaba por perder a vida de forma inglória (normalmente, o que pertence a uma minoria étnica - ver também o que acontece no Transformers).


Diferenças gritantes entre o filme e o jogo.

A não-interactividade da experiência cinematográfica (para além dos esporádicos grunhidos da audiência que interferem com os efeitos sonoros produzidos pelo sistema surround) condiciona a transposição directa de produtos que funcionam à base do matraquear incessante de botões até deixar a pele dos dedos em carne viva. Surge então a necessidade de produzir um elemento muitas vezes estranho ao mundo dos vídeojogos (e de muito cinema americano recente também): o argumento. Tal como Doom, outras posteriores adaptações de jogos de grande sucesso não souberam respeitar esta regra e falharam miseravelmente (a nível de público - mesmo contando com a base de admiradores do videojogo - e reconhecimento crítico), como o recente Hitman (2007) - do jogo onde se passam muitas horas a estrangular malta com cordas de piano - ou a trilogia de banhadas Resident Evil (2002/4/7). Ou ainda o visualmente impressionante mas extremamente secante Silent Hill (2006), realizado por Christophe Gans (de quem recomendo vivamente o espatafúrdio espectáculo de kunf-fu esotérico com lobisomens - e Mark "Corvo 2" Dacascos, e a Bellucci - na França do Séc. XVIII, O Pacto dos Lobos).

A esperança em que surja algum filme de jeito no meio deste novo filão de adaptações (porque, evidentemente, não as vão deixar de produzir) vira-se então para os vídeojogos que possuam logo à partida uma história interessante e algo profunda/complexa. Há alguns anos atrás esta última afirmação era concerteza um contrasenso, tirando as excelentes aventuras gráficas da Lucasarts que preenchiam tardes (e noites) da adolescência com os Nirvana na aparelhagem a substituir os bips irritantes do PCspeaker. Porém, hoje em dia não se pode pensar da mesma maneira, pois até um género "clássico" dos videojogos como o FPS (First Person Shooter) da Segunda Guerra Mundial vai buscar elementos narrativos e de construção/encadeamento de cenas ao cinema - quem jogou o Medal of Honor e viu o Resgate do Soldado Ryan (1998) ou a série Band of Brothers (2001) já não sabe ao certo que partes é que pertencem a cada um dos três.


Max Payne redefinindo o termo ironia.

Todo este blábláblá serve essencialmente como enquadramento para a estreia (em breve) de mais uma adaptação de um vídeojogo para cinema. A diferença aqui é que pela primeira vez as expectativas (as minhas, pelo menos) são algo elevadas, porque se trata do grande Max Payne. Quem é este gajo com um nome ao mesmo tempo genial/totalmente idiota? É o protagonista de um vídeojogo noir, um polícia meio abrutalhado com um perfil semelhante ao do Ricardo Rocha, veste gabardine com forro interior de pele de leopardo onde guarda duas (pistolas com muito estilo) Beretta. O apelido Payne é uma referência ao facto de lhe terem morto a mulher e a filha (muito Steven Seagal). Quando Max Payne está ferido (no vídeojogo), não come hambúrgueres nem "corações que rodopiam no chão", nem medikits ou coisa que o valha. Max Payne recolhe analgésicos (painkillers) que de algum modo remediam a sua dor física e espiritual. Durante os tempos de carregamento das várias fases do jogo surgem vinhetas de BD, estilo novela gráfica, que enriquecem a narrativa do jogo, ao mesmo tempo que, sobre uma camada de piano melancólico, a voz de Payne, o nosso narrador na primeira pessoa (muito à noir), reflecte sobre a sua vida miserável e as 527 pessoas que vai ter de matar para pôr tudo nos eixos. Durante o decorrer desta odisseia sanguinolenta por noites cheias de neve numa cidade meia Nova Iorque, meia Chicago, sucedem-se duplas e triplas traições, desfiles de mulheres fatais e gangsters sebosos com sotaque italiano, quartos de hotel a cair aos bocados e, finalmente, inúmeras sequências de tiroteio em câmara lenta que parecem copiadas do Matrix, ou então foi ao contrário. Ah, e há um nível do jogo muito tripante que se passa num pesadelo dentro da própria cabeça do Max, enquanto ele ouve o choro do bébé e os gritos da sua mulher.


À esquerda, Payne. À direita, Marky Mark in da house!

Resumindo: Max Payne (e a sua sequela, The Fall of Max Payne) é um vídeojogo do caraças porque se disfarça como um belo de um filme noir, mas com a possibilidade de se distribuir balas pelos gajos que chateiam muito. Será que o filme conseguirá atingir ao menos uma réstia da excelência do jogo, recuperando esse espírito noir que o distinguia dos demais "tiro-neles"? A ver pelo trailer, até se acredita nisso, mas de súbito aparece o Mark Wahlberg como Payne e não consigo pensar numa escolha pior para protagonista (uma sugestão bem melhore caso se faça um segundo episódio: Michael Madsen). É dar uma olhada no trailer abaixo e esperar pela estreia (dia 17 de Outubro nos states) a ver se vale a pena. Entretanto, recomendam-se os dois jogos do Payne, para quem ainda tem tempo para isso, entre preocupações com a recessão económica e as declarações do Presidente da República sobre o estatuto autónomo dos Açores.


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