bala perdida: julho 2007

quarta-feira, julho 18, 2007

A Lynch



Se se pudesse abrir a sua cabeça e contemplar, ainda que por uma única vez, o que existe no seu interior, ficaríamos petrificados com a quantidade de demónios íntimos que habitam aquele crânio, contentor de um cérebro meticulosamente concebido para contar estórias. E das boas. O simbolismo avassalador, que é a essência do seu objecto cinematográfico, ganha uma dimensão tão profunda quanto a horrível capacidade individual de construir o cenário mais negro. E levamo-lo para casa. Tenta-se abandonar a ideia de que o cenário não era tão negro como se havia imaginado. Em vão. Era ainda pior. O terror é eminente quando se visualiza um filme do Lynch. Não na tela, claro, mas na mente daquele que observa. E ele vai soltando-os, um a um, criteriosamente escolhidos, os demónios que outrora habitaram a sua cabeça, e hoje habitam, inevitavelmente, a nossa.

terça-feira, julho 10, 2007

O regresso do blockbuster de Verão x3



Sabe-se lá porquê, mas concerteza por motivos diametralmente opostos aos que me levaram a ver dois filmes do Manoel de Oliveira (inteiros!) no espaço de uma semana, tive a oportunidade de botar olho em cima de três das maiores apostas dos estúdios americanos para fazer render o cacau que andaram a desperdiçar, desde o final do verão passado, em festas em penthouses regadas a coke & biatches.

Uns míseros 2 euros (que à saída afinal revelaram ser uma pequena fortuna perdida para sempre) foi quanto custou a admissão na sala de tortura onde passavam O Quarteto Pouco Fantástico Aliás Bastante Normalzinho e O Surfista Marado em Tons de Prata. O grau zero do cinema de entretenimento: sem argumento, sem extraordinárias sequências de accção, nem sequer efeitos especiais de jeito e, ainda, sem ponta de humor, apesar das 319 tentativas em produzir momentos de comic relief. Por vezes parecia mesmo que o filme inteiro era um comic relief, mas de quê? Talvez do ridículo cameo do Stan Lee, logo no início (tipo, assassinam-lhe as personagens e a BD inteira e ele, de bom grado, participa no funeral).

Quem não terá achado muita piada à coisa (ou ao Coisa? hahahahahaha!) foram alguns actores secundários do filme, que vinham construindo uma reputação inexpugável em séries de televisão com muita pinta. O gajo do The Shield (O Protector, passa no AXN e na TVI, quando se lembram), uma série policial plena de sujidade (visual e narrativa) é o Coisa. O Dr. Christian Troy (quando me mudar prás américas quero ter um nome destes!) de uma das melhores série do momento, agora que Os Sopranos acabaram, Nip/Tuck (na FOX Life e na TVI, lá pelas 4 da matina) é um mauzão qualquer. Depois há também o Andre Braugher, o Detective Pembleton da fenomenal série de polícias de Baltimore (essa cidade que pede meças às metrópoles brasileiras com cerca de 400 homicidios por ano e que é soberbamente retratada na série do momento, The Wire - A Escuta, DVDs das 3 primeiras séries à venda nas locadoras nacionais, compre já) que dava pelos nineties na RTP2 , Homicide: Life on the Street, e que é uma espécie de General com passado de jock e por isso não se pode dar bem lá com o doutor não-sei-quantos (portanto, um geek ou nerd) que preside ao Quarteto. A lógica “passar das séries à TV é subir no prestígio” inverteu-se nos últimos anos. Para dar um exemplo, ainda estamos para ver um filme de jeito com o James Gandolfini, que substituiu o DeNiro como ícone do crime organizado.

Ao menos o Jóne, que me arrastou para esta pastelada cinematográfica, ficou igualmente deprimido e terá rumado directamente a casa para enfiar pelos olhos adentro 3 sequelas do Anacondas ou do Alien vs. Predator.

Uns dias depois, tempo de rever o camarada McClane, que anda a esfregar o joelhinho nu em vidro partido desde o tempo em que as galinhas tinham dentes e o avô roubava pudim Boca Doce ao neto. Ele é duro. Ele não gosta de mariquices como computadores ou internet. Ele anda sempre com 32 cartuchos de pistola no bolso do casaco, just in case. Ele é careca. Ele diz Yuppi-kay-e-Madafaca! antes de arrumar o cabecilha do gang. Ele atira carros pelo ar contra helicópetros. Ele manda selos em gajas armadas ao kungue fu. Ele é o verdadeiro Terminator, não aquele gajo que anda a governar a Califórnia sem saber mais que duas palavras em inglês. Se não acreditam, ele é gajo para dar cabo de um avião sozinho só para vocês perceberem que ele já anda aí há muitas sequelas a dar cabo do canastro a tudo o que se mexa (pessoas, veículos) e que não se mexa (paredes, muitas). Como é possível não gostar de Live Free or Die Very, Very Hard? ou, para a geração youtube, Die Hard 4.0 (gosto mais do primeiro nome).

Arranjaram-lhe um compincha. É um puto chato, que passa o filme inteiro a debitar um discurso comuno-cibernético-conspiracional muito em voga por estes dias, assim uma mistura entre Bloco de Esquerda e Linux. O McClane tem que o proteger de uma corja multinacional que mete franceses praticantes de parkour e italianos estereotipados a quem só falta dizer Mamma mia! Che Pizza! enquanto vão metralhando por aí. O chefe da pandilha é o Timothy Olyphant, mais um tipo que vem das séries (Deadwood, uma coboiada de categoria que passa no FOX) e que não chega aos calcanhares da malvadez do Hans Gruber, do tomo inicial, ou do Jeremy Irons, do Die Hard 3. Isto acontece mais por culpa de um argumento fraquito, cuja finalidade exclusiva é deixar fluir as sequências de accção, com um ou dois bitaites do Bruce pelo meio. E essas são boas, apesar de às vezes o McClane parecer mais o Rambo do que um polícia de Nova Iorque, tal a quantidade de malta que avia sem parar para tratar de uma ou duas balas que entretanto se lhe alojaram no coração, coisa pouca.

Um filme que mete o pessoal a dar murros de contentamento no ar e a repetir expressões-cliché logo nos primeiros 10 minutos não pode ser mau. Já não me lembrava de fazer dessas tolices. Foi hora e meia bem passada, entre explosões, nostalgia e o McClane a cair de prédios abaixo. Infelizmente a Holly, a ex-mulher do McClane, não compareceu à festa, mas a filha dele já é crescidita e não fica mal em película. Vamos esperar então pelo quinto capítulo deste serial, de preferência com mais porrada ainda.

Para finalizar este devaneio hollywoodesco, nada como ver um filme do Michael Bay. Sim, esse mesmo, o senhor que gastou mega ziliões de milhões de dólares para fazer o Pearl Harbour, um filme que já foi oficialmente considerado pelo governo americano como uma catástrofe com consequências mais devastadoras que o próprio bombardeamento de Pearl Harbour pelos japoneses. Como medida preventiva, Michael Bay foi encarcerado pelo governo do Tio Sam, um dos irmãos do George W., na prisão de Guantanamo, onde dia sim, dia não era torturado com o recurso à action figure da personagem do Ben Affleck no Armageddon (não se sabe exactamente de que modo a figura terá sido utilizada nessas sessões de tortura, mas advinha-se). Todos os dias pedia para telefonar ao Jerry Bruckheimer, mas ele andava ocupado com o início da produção do novo franchise do CSI, CSI: Massachussets e nunca estava em casa.

Um dia o Spielberg estava a rever o E.T. e, como toda a gente, chorava na parte final, em que o puto se despede do alienígena. Lembrou-se do Michael Bay, lá nos confins de Cuba, o boneco do Ben Affleck como única companhia, e teve pena dele. Telefonou para o George W. a dizer que lhe enviava uma cópia do E.T. autografada pelo próprio extra-terrestre se ele libertasse o Michael Bay. Assim se fez. Quando o Michael Bay voltou a pousar pés nas américas, o Spielberg estava à espera dele no aeroporto com um contrato para realizar o Transformers. O Spielberg é um fixe.

Michel Bayé, j'ai besoin de toi.

O resultado desse encontro infernal entre, respectivamente, um dos gajos mais respeitados do cinema e o gajo menos respeitado do cinema tem uma duração superior a duas horas. Nós, inocentes, de início pensamos em 120 minutos de porrada entre robôs com um ou dois corpos dilacerados de humanos a pontuar a acção de vez em quando para a coisa ter o seu quê de orgânico. Mas não. Afinal, o Michael Bay quis fazer uma espécie de National Lampoon’s Transformers, ou American Pie meets Tron ou coisa que o valha. De todos os cantos surgem disparadas piadas, ao ritmo de duas ou três por segundo, numa lógica de “se falhas uma, mandas mais dez até que uma delas tenha piada”. O pior é que nenhuma delas chega a ter, nem aquela em que o Michael entra em modo auto-irónico, pondo as personagens a gozar com o Armageddon. Depois, há que fazer render a publicidade na colocação de produtos: há um transformer que passa a vida no yahoo (não, não é a pesquisar porno); o ebay surge mencionado umas 50 vezes; os Autobots são todos da General Motors; a dada altura, o personagem principal veste uma t-shirt dos Strokes (tá a vender CDs!); cúmulo dos cúmulos, há uma sequência escrita de propósito só para mostrar um novo telemóvel da Nokia e os personagens repetem o nome da marca umas dez vezes (é um nokia! ah, é um nokia! pois, é um nokia! etc…).

O Michael Bay não perde também a oportunidade para encher o filme com as suas sequências de marca: 12 planos de pessoal a subir para aviões com banda sonora de orquestra triunfante a acompanhar. E, claro, todas as gajas têm que ter estofo para aparecer na capa da Maxim, se fôr preciso, não só a babe do protagonista, mas também a líder dos geeks, que basicamente passa o filme a correr de um lado para o outro montada em saltos altos. Mortos no ecrâ, nem pensar, nem ponta de sangue, inclusive depois dos transformers destruírem a baixa de L.A. inteirinha.

Mas se há coisa que não se consegue estragar são os Transformers. Vá lá, são robôs que se transformam em carros, aviões, tanques, camiões ou até rádios! Criados nos anos 80! Davam na televisão quando a malta era mais cachopa! Há coisa mais porreira que isso? Bem, talvez isto que o compincha jwoofer descobriu no outro dia. No filme, quando a robô-batalha começa, um gajo esquece-se de tudo, até do Michael Bay, e é desfrutar do som da chapa a bater e das sequências em câmara lenta (há uma em que até o Spielberg deve ter chorado) com transformers a saltar por cima dos mísseis. Pelo meio há uma coisa chamada argumento, mas é tão mau que o pessoal limita-se a contar os segundos até à próxima cena de pancada enquanto passa as vistas por uma das tespianas no écrâ.


É para ver a mandar murros no ar e a cantar em falsete:

Transformers

More than meets the eye!

Transformers

Robots in disguise!

Tempo agora de fazer uma cura de blockbusters vendo a integral do João César Monteiro. Ou não. Felices vacaciones!

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quarta-feira, julho 04, 2007

Poesia Urbana

Foram precisos mais de 2 anos, para que algum de nós se lembrasse que, apesar de termos uma amante chamada cinema, temos uma paixão denominadada arquitectura. Ao fim de dois anos, aparece aqui, milagrosamente, um texto de arquitectura (é mais assim a modos que um poema). Neste caso sobre Nova Iorque (um bocado para celebrar a ida de um de nós a uma outra grande metrópole, Tokyo).



Manhattan transforma-se no palco de experimentação arquitectónico, no qual o real é a consequência mais directa da utopia. Durante o século XX, Manhattan modifica radicalmente a sua morfologia e gera, de uma forma avassaladora, o cenário metropolitano mais cobiçado para a concretização de qualquer tipo de fantasia. No início do século XXI, afirma-se (involuntária e irrevogavelmente) como um espaço de mediatização absoluta quando transforma a tragédia máxima, num momento que se revela igualmente cruel e sublime. A morte de milhares contribui, em última instância, para a solidificação da condição reivindicada: a que a utopia prevaleça. O simbolismo inerente à queda das torres é, apenas, um pretexto para que se possa materializar mais uma fantasia – precisamente onde aconteceu a tragédia. Com alguns anos de distância que fomentam a reflexão, a tragédia inunda-se a si própria de significados eminentes. Aquela que me interessa agora é, a face que relaciona directamente a imagem do desmoronamento das torres, com um gorila a escalar o edifício mais alto, ou os anões que habitam uma cidade miniatura. É a face que, de tão crua, se torna milagrosamente bela. Como os aviões a colidirem com uma parede maciça de betão e a consequente derrocada. Mais uma imagem incrível debitada por esse baú gigante de postais que é Manhattan. Não que alguém desejasse estar lá nesse momento, mas uma coisa é certa: Manhattan nunca fora tão bela. Tão perigosamente apetecível. Como uma paixão que desemboca numa tragédia, resta somente uma coisa: apaixonarmo-nos novamente. O estratagema resultou. Manhattan ergue-se das cinzas e, pelo sonho, promete a sua reconstrução de uma forma ainda mais sublime. A brutalidade do simbolismo é inigualável quando se constata que, efectivamente, existe já um novo ícone em Manhattan: um pedaço de terreno atulhado de destroços. A nova atracção que move milhões é uma parcela de terra onde, simplesmente não existe nada, a não ser entulho. O Central Park, inesperadamente, deixa de ser o vazio mais popular em Manhattan, para ceder lugar ao Ground Zero. Porém, além de serem ambos um vazio, no meio da massa edificada da ilha, é impossível qualquer outra relação entre eles. Sendo semelhantes no abstracto, são demasiado diferentes na realidade. A demanda popular pela quimera, subsiste e fortalece-se.

No início do século XX, essa procura materializou-se num mundo fantasioso, primeiro em Coney Island, depois em Manhattan. Primeiro os parques de diversão que ofereciam o alheamento da realidade mundana, e uma duplicidade formal obtida através de meios tecnológicos, que rapidamente se transferiu para Manhattan, depois a própria materialização na ilha maior, da fantasia, com o emergir do novo mutante que vem dominar a cidade. A metrópole molda-se à pressão popular, uma tentativa desesperada de resposta a um fenómeno que, em primeira instância, é provocado por ela própria. A derradeira condição metropolitana confere a Manhattan um poder mítico de controle sobre tudo o que se desenrola na ilha. Tudo menos a dimensão do sonho que ela própria estimula. É gerada uma arquitectura baseada nos princípios da demanda popular e associada, sempre, a um ideal hedonista e de consumo.

Em última análise, depois da busca popular pela satisfação da utopia, os próprios construtores de Manhattan são convocados a intervir, para que seja possível essa materialização. No fim, também uma elite cultural (o arquitecto) se propõe a intervir em Manhattan, aqui, para que igualmente as suas fantasias sejam consumadas. Manhattan adquire uma colecção absolutamente incrível de objectos construídos ao longo do século XX que, por um lado, são frutos deste fenómeno complexíssimo que é a sua própria condição metropolitana e que, por outro, e de uma forma extraordinária, funcionam milagrosamente em conjunto. A matriz, que em primeira instância provoca o constrangimento e delimita ao interior da quadrícula qualquer intervenção possível, permite, por outro, a construção e a co-existência de qualquer objecto dentro de si própria, assim como proporciona a derradeira fronteira celeste. E o ciclo fecha-se uma vez mais com a queda das torres. Manhattan está pronta para incorporar mais um elemento na sua densa malha: um novo sonho.

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