Lembras-te de mim, ó Xavier

Depois destra entrada à campeão (ao que parece, cortesia de uma produtora de animação chamada Objectivo 49, que deve ter umas ligações com o Fincher, concerteza), há um primeiro contacto com uma aldeiaizita, daquelas mesmo pequenas, com bosta de bovino a pavimentar as ruas e tudo, onde vemos um gajo de barba a cortar lenha com bastante convicção. Quando faz uma pausa na labuta, sente que se passa qualquer coisa no mato e como não é gajo de modas (e tem a colecção do shyamalan em casa) avisa o filho para se pirar, que não devem tardar muito os seres daquela cor que não se pode dizer o nome: "ó Zé, vai pra dentro". As semelhanças com o filme do discípulo do spielberg acabam aqui. A história desenvolve-se em torno de uma família citadina que, em busca de paz e harmonia, decide mudar-se para o interior profundo, para uma casa que pertencia à família do marido, um biólogo que trabalha para o Instituto de Conservação da Natureza. A família está um bocado contrariada com a mudança e há pontas soltas nas relações entre os seus elementos por resolver. No fundo, como já diziam alguns bravos comentadores de um pasquim que tem um suplemento semanal dedicado às artes, o filme é sobre uma família em desagregação, desvendando-se (ou sugerindo apenas) ao longo da narrativa os segredos sujos por detrás das clivagens entre os seus membros (um deles é particularmente sujo e acrescenta uma densidade necessária à construção da história). A questão dos mitos, lendas e superstições à solta na povoação deriva desses conflitos internos que abalam a família, com raízes já antigas, descobrimos mais tarde.
Desde o início que topamos que este pessoal da publicidade domina os meios técnicos com uma mão atrás das costas a fazer tricot e a outra a fazer um manguito ao amigo Oliveira e ao cinema português em geral. Enquadramentos perfeitos, movimentos de câmara suaves como um Barca Velha de 82, fotografia calibrada ao detalhe e os clássicos focados e desfocados, que ficam sempre bem em película. A construção do lugar faz-se através da escolha dos lugares-tipo (igreja de pedra, taberna escura, caminhos de terra, a casa, etc) que estaríamos à espera de encontrar, mas o ritmo apressado inicial, falho de nuances que poderiam enriquecer este retrato-robot, não nos permite entrar verdadeiramente dentro do sítio como gostaríamos. Aliás, durante todo o filme, o ritmo nunca contribui muito para o fluir de umas cenas para as outras, prejudicando o impacto de muitas delas e a construção da história em geral. A direcção de actores também não é perfeita, nomeadamente quando há diálogos, que os personagens parecem recitar directamente de um livro que têm à frente, funcionando vezes demais como uma muleta para explicar questões narrativas (quando se podia dizer menos). O elenco de secundários parece estar mais dentro do papel: a empregada da casa - tem uma fala, o resto são só rezas - os dois trabalhadores do ICN são uma mais-valia para a história (apesar de um deles desaparecer a meio do filme sem explicação - não tinham dinheiro para lhe pagar mais uns dias de rodagem?); o padre mais velho tem bastante carisma; o filho mais novo também é bastante credível no seu papel.
A partir da segunda metade (houve intervalo) o filme começa a levantar vôo e a ganhar uma consistência que não vinha demonstrando, avançando com segurança até ao desenlace final. Pelo meio há o recurso a alguns flashbacks, que estão muito bem metidos (nada de tretas a preto e branco, portanto) e onde até aparece, num cameo, o amigo Paulo Branco. Também há umas visões que os personagens começam a ter (umas estúpidas, outras mais relevantes). O clímax final chega sem aviso (o que é bom), numa colagem de cenas, muito bem filmadas e estruturadas, que vai ganhando lentamente contornos mais fortes até partir tudo. Aqui (como no resto do filme, aliás) a música do grande Jorge Coelho tem um papel determinante na carga dramática que a cena transmite. Jorge, se estás a ouvir isto, deixa a m**** dos Mesa a fazer música do p**** e dedica-te às pistas sonoras, que o pessoal já está farto das partituras orquestrais grandiosas de johnes williames e quejandos (o gajo do Lost também é chato como a potassa). Quanto ao final propriamente dito, parece-me estar bem resolvido, se não gostarem muito sempre podem propôr um director's cut pró dvd daqui a uns anos, em que o pessoal acaba todo a cantar e a dançar como num musical e alguém diz, acenando, "Adeus! Até à próxima!". Aquele último plano do cruzamento é que não tem muito a ver.
Concluindo: parece que o cinema português está numa de fazer filmes a sério, em vez de delírios onanísticos financiados a fundo perdido pelo ICAM, como nos últimos cem anos (concedo que há algumas excepções, poucas). Isso é bom. Afinal, foi por causa disto que pessoas como eu andaram a fazer o 25 de Abril.
Vão ao site do filme, é bué da bom.
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